OPINIÃO – Transporte público de boa qualidade: um direito de todo
Otávio Cunha*
Quando, em 2015, o Brasil reconheceu o direito social do cidadão ao transporte público, houve grande expectativa do setor por uma mudança drástica no tratamento que o poder público sempre destinou ao transporte coletivo urbano por ônibus. Mais do que isso, houve quase uma certeza de que o ônibus teria, enfim, a tão desejada qualidade que o passageiro deseja e merece.
O acréscimo na redação do artigo 6º da Constituição, incluindo o transporte como um direito social, tal qual educação, saúde e segurança, entre outros direitos lá inscritos, parecia ser a resposta a inúmeras investidas que o setor fez, ao longo de quase 30 anos, às autoridades competentes.
Era a possibilidade de encontrar uma saída para a grave crise enfrentada com a perda de produtividade do ônibus, a preocupante queda de passageiros e o ultrapassado modelo tarifário do setor. Afinal, pressupunha-se que um direito social inquestionável e legítimo seria o argumento irrefutável para alçar o transporte público por ônibus ao lugar de destaque nas prioridades da agenda pública da mobilidade urbana.
Infelizmente, não foi o que aconteceu. Passados quatro anos desde a promulgação da Emenda Constitucional 90/2015, pouco mudou. O compromisso assumido pela sociedade brasileira ainda não se traduziu em políticas que priorizem de maneira efetiva o transporte público em relação às opções individuais de deslocamento motorizado.
Apesar disso, o setor não ficou de braços cruzados. Mesmo enfrentando condições adversas, traduzidas por uma redução de 25,9% dos passageiros pagantes no período de 2013 a 2017, se esforçou para manter o nível e a oferta dos serviços, colhendo ao final de 2018 um resultado positivo que sinaliza a possibilidade de interrupção do ciclo de queda de demanda observado nos últimos cinco anos. O desempenho setorial, principal objeto deste Anuário – ao qual a NTU se dedica há exatos 25 anos, na coleta e registro de dados – apontou uma leve recuperação da demanda em relação ao ano anterior, de 3,6%.
Vale ressaltar que fatores sazonais, como um número maior de feriados em 2017, interferiram na amostra, que indica mais uma estabilização do que uma reversão do processo de perda de passageiros. Na realidade, a retomada do crescimento só virá com avanços na concretização de medidas que deem ao transporte público por ônibus a prioridade necessária e lhe devolvam a eficiência perdida.
O setor fez a sua parte durante o ano passado, ao contribuir para um minucioso diagnóstico da mobilidade urbana, com foco no transporte coletivo por ônibus, contendo as sugestões para o Brasil atender às demandas sociais por um transporte mais eficiente e sustentável. O conjunto de propostas foi entregue aos novos governantes eleitos no início deste ano.
A publicação Construindo Hoje o Amanhã – Propostas para o transporte público e a mobilidade urbana sustentável no Brasil (disponível em www.antp.org.br e www.ntu.org.br) é o resultado do esforço conjunto de especialistas, gestores públicos e operadores do serviço, fruto de criterioso estudo acerca dos principais entraves do modo ônibus e dos impactos decorrentes desses desafios estruturais históricos na mobilidade urbana, com reflexos diretos da deterioração do principal modal de transporte do país – responsável por 85,7% das viagens realizadas por meio do transporte coletivo urbano no Brasil.
Construindo Hoje o Amanhã contém sugestões organizadas em cinco grandes programas considerados essenciais para se construir um transporte público de boa qualidade, com transparência e preços acessíveis aos passageiros. As propostas estão detalhadas na sequência (ver página XX).
Essa proposta setorial reconhece o papel fundamental e insubstituível desempenhado pelo transporte público na mobilidade urbana, condição que qualifica o setor como merecedor de mais atenção e recursos, hoje praticamente restritos ao valor das tarifas arrecadadas dos passageiros pagantes. O documento materializa a incansável busca por soluções e transfere para quem de direito a obrigação de executar ações em prol do passageiro, detentor do direito social ao transporte.
Enquanto entraves históricos seguem à espera de uma solução, novos embates têm surgido e exigido maior vigor e comprometimento para que o setor possa avançar. É o caso das ferramentas tecnológicas digitais, que têm seduzido usuários e não usuários do transporte público com suas facilidades, embora extrapolando, em certos casos, os limites da legalidade, oferecendo concorrência desleal por meio de opções coletivas que afrontam as regras estabelecidas nos contratos de concessão.
Esses desafios têm estimulado as empresas de ônibus a inovarem e se reinventarem. Novas opções estão surgindo, como o caso dos serviços coletivos sob demanda por aplicativos, em fase de teste em cidades como Goiânia (GO) e São Bernardo do Campo (SP), que complementam a rede básica de transporte público.
A busca pelo novo e pelo legítimo direito de competir em pé de igualdade no atual cenário da mobilidade conectada move o setor para o futuro. É lá que o COLETIVO – Programa de Inovação em Mobilidade Urbana (www.coletivo.org.br), recém-lançado pela NTU, contribuirá para devolver ao passageiro, ou melhor, ao cliente do ônibus urbano, a dignidade perdida com a falta de priorização desse transporte. E também ajudará a conquistar o direito social não efetivado, na prática.
Histórias de sucesso, empenho e motivação não faltam ao setor, mas sua situação atual, que ora expomos em números, mostra que ainda falta às autoridades públicas enxergar a mobilidade urbana no Brasil de forma integrada, planejada, aberta ao novo, como um direito, de fato, de cada cidadão.
Otávio Cunha, Presidente Executivo da NTU.